DEBATE: POSSÍVEIS TEMAS SOCIAIS
Fazer uma boa redação não é resultado apenas de decorar uma estrutura dissertativa e suas marcas de conexão. Depende, também, do conhecimento sobre o tema, para que você, candidato, sinta-se mais seguro para construir o seu pensamento crítico. Desta forma, conhecer o perfil dos temas cobrados pelo ENEM é mais importante do que tentar adivinhar o tema antes da prova.
Lembre-se de que qualquer proposta de redação do ENEM remete a assuntos sociais. Já sabemos que o perfil temático do exame remete a um tema social, do Brasil, divulgado em TV aberta e discutido durante o ano. Neste módulo, entre as várias possibilidades, destacamos os temas: A inversão da pirâmide etária no Brasil, Mobilidade urbana e sociedade brasileira, Apropriação cultural, Os sem-teto e a apropriação de imóveis abandonados nos grandes centros urbanos brasileiros.
A INVERSÃO DA PIRÂMIDE ETÁRIA NO BRASIL
O Brasil ainda é um país de jovens?
Melhor dizer que é um país em franco processo de envelhecimento. A proporção de idosos, que hoje é de 9%, passará a 14% (limiar a partir do qual os países são chamados ‘envelhecidos’) por volta de 2018 e, em 2050, deverá ser superior a 25% – o que atualmente ocorre apenas no Japão e na Itália, hoje os países com mais envelhecimento, respectivamente, do mundo e da Europa. Veja, para a França dobrar a proporção de idosos de 7% para 14% foram necessários 115 anos (1865-1980); nós o faremos no equivalente a uma geração. Portanto chamar o Brasil de país ‘jovem’ não reflete a velocidade de seu envelhecimento populacional e é perigoso, gera uma inércia, a ideia de que isto não deve ser uma preocupação para a sociedade e de que políticas pertinentes sejam ‘coisa do futuro’.
Quais as causas dessa mudança tão rápida na pirâmide etária?
Para que uma população envelheça é necessário um aumento da expectativa de vida e uma diminuição das taxas de fecundidade. No Brasil, o aumento da expectativa de vida nas últimas décadas foi espantoso. Quando eu nasci, em 1945, por exemplo, essa expectativa era de 43 anos. Hoje é de 73 anos! Trinta anos no meu tempo de vida. Ao mesmo tempo, houve uma queda drástica da taxa de fecundidade nas últimas três décadas. O número médio de crianças que uma mulher espera ter até o final de sua vida reprodutiva, que era por volta de 6 em 1975, caiu para 2 em 2005. Ou seja, 2/3 a menos em praticamente uma geração! Duas crianças por mulher significa estar no limiar de reposição – se os casais têm menos que dois filhos não se ‘repõem’. Em 1970, apenas 22 países se encontravam nessa situação (todos do mundo desenvolvido); hoje são cerca de 70 e, no ano 2020, serão mais de 120 (a maioria do mundo em desenvolvimento). Apenas os países mais pobres (e, no geral, pequenos) terão taxas de fecundidade acima do limiar de reposição.
Que implicações socioeconômicas isso trará para o Brasil?
Imensas. Não só para o Brasil, mas para o mundo em geral. Os países desenvolvidos primeiro enriqueceram e depois envelheceram. Países como o Brasil estão envelhecendo antes de serem ricos. A população total do mundo crescerá dos 6 bilhões em 2000 para 9 bilhões em 2050. Nesses mesmos 50 anos, a população de idosos terá aumentado de 600 milhões para 2 bilhões – 350%. Contando apenas os países em desenvolvimento, o aumento será de 450%: de 400 milhões em 2000 para 1,7 bilhão em 2050. Isso significa que cerca de 85% do total de idosos do mundo estará vivendo nos países mais pobres. Se essas nações não conseguirem dar uma arrancada significativa para melhorar sua situação econômica, enfrentarão um desafio enorme.
Observe os exemplos do Japão e da Itália. São países que estão preocupadíssimos com sua situação demográfica. Nós teremos esse mesmo perfil daqui a 40 anos, e, o que é crítico, com menos recursos. Quem sustentará essa proporção de idosos? Que políticas estão sendo postas em prática? Como estão sendo preparados os profissionais que estão se formando hoje? Que investimentos estão sendo feitos para que os futuros idosos envelheçam com saúde, continuando ativos e inseridos na sociedade?
Quais as maiores carências hoje no Brasil para atender às necessidades dos idosos?
A OMS norteia sua política para o envelhecimento de acordo com um documento lançado em 2002, intitulado “Envelhecimento Ativo, um Marco Político”. Ele define o ‘envelhecimento ativo’ como o “processo através do qual se possam otimizar as oportunidades para saúde, participação e segurança, de modo a assegurar qualidade de vida à medida que se envelhece”. Isso é fundamental. Todos queremos envelhecer, mas com boa saúde, para poder continuar participando da vida em sociedade. E é preciso implantar sistemas que garantam essa segurança também aos mais pobres e vulneráveis. Nossas carências ainda são enormes em relação a esses três pilares do ‘envelhecimento ativo’. Temos um Estatuto do Idoso excelente, alicerçado em três áreas estratégicas – envelhecimento como tema de desenvolvimento, saúde na velhice e questões sociais relacionadas a essa fase da vida –, porém, falta muito para tê-lo colocado em prática.
O que deveria ser feito com urgência para que a população tenha qualidade de vida nessa fase de envelhecimento?
Acesso a serviços básicos de saúde – por meio da rede de atenção primária (centros de saúde que prestam assistência à comunidade local) – e garantia de uma renda mínima são os dois pontos essenciais. Nosso país tem feito progressos importantes nesses dois sentidos, principalmente nas regiões mais pobres. Mas ainda há muito a conquistar, sobretudo no tocante a adequar os serviços básicos de saúde para a população idosa.
A OMS tem um projeto sendo implantado em caráter piloto em sete países, entre os quais, o Brasil. Trata-se do ‘Centro de Saúde Amigo do Idoso’, que está sendo testado em São Miguel Paulista e no bairro de Manguinhos, no Rio. Com estrutura apropriada e profissionais especializados, o intuito é prestar assistência efetiva aos problemas comuns nessa faixa etária, como perda de capacidades e doenças crônico-degenerativas, evitando que os idosos precisem recorrer a hospitais.
De suma importância também é o experimento social que o Brasil (e a África do Sul, outro país em desenvolvimento com um esquema similar) está implantando: a aposentadoria não contributiva. Mais de 6 milhões de brasileiros com mais de 65 anos – os mais pobres, a maioria vivendo em zonas rurais – hoje se beneficiam dessa pensão, mesmo que não tenham contribuído para o sistema de seguro social. São os que trabalharam como camponeses sem direitos trabalhistas, no sistema informal da economia. Mesmo pequena, essa pensão tem sido, com frequência, a única fonte regular de renda de toda a família. Que fazem com o que recebem? Compram alimentos, medicamentos e roupas para todos na casa. Têm acesso a crédito pela primeira vez na vida. Ganham um sentido de dignidade e autoestima nunca antes sonhados. Calcula-se que mais de 2.000 municípios no Brasil têm suas economias hoje gravitando em torno dessas pensões. Estudos preliminares, tanto no Brasil como na África do Sul, mostram que a sociedade toda sai lucrando.
Além dos programas emergenciais, que outros aspectos deveriam ser repensados?
Quando se passa por uma transformação tão rápida como a demográfica em nosso país, é necessário reinventar a sociedade. Não se pode esperar que as regras e estruturas permaneçam as mesmas, intocáveis, como se fossem reagir naturalmente. É preciso ter visão, antecipar, liderar.
Nesse sentido, a OMS lançou em 2005 um projeto mais amplo: ‘Cidades Amigas dos Idosos’. Tudo começou em Copacabana – onde nasci, numa maternidade transformada em hospital geriátrico. Um bairro que reflete os contrastes e contradições do país como um todo, abrangendo desde as classes alta e média até as mais baixas, inclusive várias favelas que a circundam, e hoje tem uma estrutura etária mais envelhecida do que a do Japão, da Itália ou de países escandinavos. Urbanizada nos anos 1930, 40, 50, abriga hoje milhares de idosos, adultos que lá permaneceram, enquanto seus filhos e netos migraram para outros bairros. Alguns continuam ativos, fazendo suas caminhadas, indo às compras, frequentando restaurantes. Mas muitos outros são ‘invisíveis’. Estão em suas casas com graus diversos de incapacidade, fragilizados, sem condições de uma vida melhor. Daí a ideia do ‘Copacabana Amiga dos Idosos’, buscando deles as sugestões e preferências, para depois ver o que é viável e colocar em prática por meio de parcerias com o governo, as organizações não-governamentais e o setor privado – todos juntos.
‘Cidades Amigas dos Idosos’, que de início era apenas ‘Copacabana’, acabou se estendendo ao mundo. Aproveitamos a metodologia para lançar outros, paralelos: ‘Londres Amiga do Idoso’, Xangai, Tóquio, Moscou, Istambul, Nova Délhi, Melbourne, Buenos Aires… São 40 cidades implementando a ideia. No dia internacional do idoso, 1º de outubro, divulgaremos o relatório final do projeto. Ele constitui uma das ações primordiais do Programa de Envelhecimento e Saúde da OMS, que vê a questão do idoso de forma positiva. É sempre bom lembrar que todos estamos em envelhecimento e que o idoso tem um passado importante. Envelhecer é bom – o ruim é morrer precocemente.
MOBILIDADE URBANA E SOCIEDADE BRASILEIRA
Sete cidades no mundo que são modelos de mobilidade urbana
É possível encontrar soluções para um transporte público eficaz? Veja exemplos que deram certo.
Imagine morar em uma cidade onde existem mais bicicletas do que pessoas? Em Amsterdã, na Holanda, as bikes não são apenas maioria, como também têm prioridade no trânsito: boa parte da população se locomove diariamente pelas ciclovias, e os ônibus e outros veículos param para dar passagem aos ciclistas. O estímulo ao transporte não motorizado é um dos traços que caracteriza as melhores cidades do mundo em mobilidade. Além disso, a implantação de sistemas que priorizam a integração entre os modais faz com que o trânsito seja mais fluido e prático, com conexões reais entre os diferentes meios de transporte. Elencamos sete cidades do mundo reconhecidas pela eficiência nessa área.
Confira abaixo:
Copenhague, na Dinamarca
Mundialmente famosa por sua cultura de valorização da bicicleta, a capital da Dinamarca é considerada a melhor cidade do mundo para quem utiliza as bikes como meio de transporte. A mobilidade urbana é garantida pelo fácil deslocamento dos moradores pelas vias de acesso às regiões centrais. Os números ajudam a entender o cenário: 50% dos habitantes deslocam-se diariamente de bicicleta para ir trabalhar ou estudar, e 63% dos membros do parlamento dinamarquês também. Aliado ao uso das bikes, Copenhague oferece outros exemplos de projetos bem sucedidos que ajudam a melhorar o deslocamento pela cidade. O sistema de sinais de tráfego inteligentes, por exemplo, consegue identificar a aproximação de veículos na rodovia (sejam eles bicicletas, carros ou ônibus). O sinal detecta quantos ciclistas estão se aproximando do cruzamento. Se há um grupo muito grande, permanece aberto por um tempo maior para permitir que todos cruzem a rodovia. Assim, é capaz de organizar melhor o fluxo.
Berlim, na Alemanha
A diversidade de modais disponíveis e a facilidade de acesso é a principal característica da mobilidade urbana em Berlim. Lá, trens, ônibus, metrôs, carros e bicicletas circulam em harmonia. Os moradores da capital alemã fazem, em média, 3,5 viagens por dia, e a taxa de tráfego de pedestres é semelhante à taxa de tráfego de automóveis. Cerca de 13% das rotas são feitas de bicicleta, e a preferência pelo transporte público aumenta a cada ano. Entre 2001 e 2011, o número de usuários do transporte público cresceu mais de 20%. Em 2014, foram mais de 978 milhões de passageiros.
Um dos componentes importantes das políticas públicas de Berlim para o transporte tem sido o planejamento das vias para bicicleta e pedestres. A cidade construiu mais de 1000 quilômetros de ciclovias e o número de ciclistas aumentou mais de 40% entre 2004 e 2012. Em média, moradores de Berlim andam ou pedalam em 40% das suas viagens. Outra importante iniciativa da cidade alemã são os projetos de carros elétricos. Desde 2012, Berlim tem investido na tecnologia, e conta com 7,9 mil veículos elétricos, e mais de 500 estações de carga de energia espalhadas pela cidade.
Hong Kong
Principal centro de negócios e turismo da Ásia, Hong Kong conta com um dos sistemas de mobilidade urbana mais bem organizados e eficientes do continente. Por dia, são aproximadamente 12,6 milhões de viagens feitas de transporte público. O que faz os deslocamentos serem eficientes é o sistema MTR (Mass Transit Railway), reconhecido como um dos mais eficazes do mundo. Espécie de linha de trem super rápida, serve às áreas urbanizadas de Hong Kong e localidades próximas, sendo o meio de transporte mais popular da região, com cerca de 5 milhões de viagens diárias. O MTR tem aproximadamente 218,2 quilômetros de extensão, com 159 estações. A eficiência no tempo dos trajetos também conta pontos para a cidade: estimativas apontam que os trechos são feitos dentro do horário estimado em 99% dos casos.
Amsterdã, na Holanda
Amsterdã também é reconhecida pela grande quantidade de bicicletas. Mais da metade (58%) dos moradores da cidade utilizam esse modal para se locomover diariamente. A estimativa é de que existem 880 mil bicicletas e cerca de 800 mil habitantes, ou seja, mais bikes do que pessoas. O plano de mobilidade urbana dá prioridade aos pedestres e ciclistas, especialmente nas regiões centrais. Estacionamentos de bicicleta adicionais estão sendo criados, além de melhorias no acesso a conexões entre os aeroportos e regiões mais movimentadas. O distrito de Zuidas, por exemplo, conhecido por ser a região “de negócios”, está a apenas seis minutos de trem do aeroporto de Schiphol.
Hoje, o transporte público local oferece diversos modais diferentes de locomoção: trem, metrô, bondes elétricos, ônibus urbanos e regionais, barcos do tipo ferries (que também comportam ciclistas), centrais de táxi e os chamados comboios de alta velocidade, os Thalys, consórcio de ferrovias entre França, Bélgica e Holanda que têm rotas entre Paris, Bruxelas e Amsterdã.
Londres, no Reino Unido
A capital da Inglaterra é uma cidade pioneira em mobilidade: implantou o primeiro túnel submarino, o primeiro aeroporto internacional e a primeira rede ferroviária subterrânea do mundo, o London Underground, conhecido como The Tube. Hoje, o sistema de transporte da cidade é referência mundial por integrar metrô, trem, ônibus, bicicleta e táxis. O metrô de Londres tem mais de 400 quilômetros de extensão, e transporta cerca de 1,1 bilhão de passageiros por ano. A peça-chave desse sistema integrado são os Oyster Card, outra referência criada por Londres. O sistema de bilhetagem eletrônica permite que os moradores acessem os diferentes tipos de transporte com apenas um cartão. O Oyster dá acesso ao metrô, ônibus, trens e aos barcos que sobem e descem o Rio Tâmisa. Em 2010, Londres lançou seu sistema de bikes públicas para aluguel, e hoje já conta com 6 mil bicicletas. Outra iniciativa adotada pela cidade foi o pedágio de congestionamento, que restringe a circulação de carros no centro. O objetivo é estimular o uso do transporte público e reduzir as emissões de carbono pelos veículos.
Cambridge, no Reino Unido
Situado a cerca de 80 quilômetros de Londres, o condado de Cambridge tornou-se modelo de mobilidade urbana depois da implantação do sistema de transporte coletivo conhecido como BHLS (Bus with High Level of Service, que significa “Ônibus com Alto Nível de Serviço”), ou The Bushway. Instalados em 2011, os veículos desse tipo se diferenciam dos ônibus comuns por serem mais velozes e seguros. Construído no percurso de uma antiga ferrovia desativada, o modelo tem um sistema conhecido como “guided bushway”. O veículo é guiado por rodas de aproximação nas faixas exclusivas, o que permite que ele trafegue em velocidades com segurança. Além disso, foi construído de modo que os ciclistas possam utilizar ciclovias laterais ao seu trajeto.
Nas principais estações, há locais para guardar a bicicleta e também estacionamentos para veículos, para quem quiser deixar o carro estacionado e seguir seu trajeto pelo BHLS. A infraestrutura oferece alta acessibilidade em todas as estações, o piso é nivelado à plataforma de embarque. Em horários de pico, a frequência é de um ônibus a cada 5 minutos.
APROPRIAÇÃO CULTURAL NO BRASIL
Por Juliana Domingos de Lima e Felipe Higa – Edição Identidade – junho de 2015
Como se inscreve a apropriação cultural no mito de origem da sociedade brasileira? Mito: “fábula que relata a história dos deuses, semideuses e heróis da Antiguidade pagã”. Nosso mito de origem é o elogio da mestiçagem. A fábula da miscigenação de portugueses, negros e índios, que teria se dado tal e qual a mistura de um caldo cultural de ingredientes proporcionais, amalgamados por processos irrefreáveis, de certa forma até cordiais. Mas a música popular documenta em que condições se deu a miscigenação: “o meu pai dormia em cama / minha mão no pisador”. Se deu no estupro, na espoliação e na violência, matriz presente na reprodução dos indivíduos tanto quanto das manifestações culturais, cada vez mais imbricadas, das etnias. A feijoada é invenção de sobrevivência na escassez: a feijoada é do Brasil. A copeira é resistência escrava: a capoeira é do Brasil. De repente, o que se funda na cisão e na exploração, se enxerga como cultura homogênea. Mito: “interpretação primitiva e ingênua do mundo e de sua origem”. O mito da brasilidade misturada apaga pertencimentos, resistências, contribuições. Mito: “narrativa fantástica”. Na contemporaneidade, os significados e símbolos culturais estão em disputa, em constante tensão, em reivindicação permanente por aqueles de quem foram expropriados no contexto colonial ou neocolonial, que agora tem voz para reclamar autoria: “Não podemos ser ingênuos de achar que no Brasil não existe racismo e ficar batendo na tecla do ‘mito da democracia racial’.
O racismo se dá de forma gritante, e os símbolos acabam sendo apropriados nessa lógica de dominação, onde a cultura dominante acredita e reproduz que somos subordinados aos seus desejos. Isso foi sendo feito historicamente por aqui, a diferença é que agora nós negras e negros temos como apontar o racismo e dizer NÃO. Nossos símbolos não são modismos, carregam o simbolismo de uma identidade étnica que foi subalternizada por anos, isso não aceitamos mais”, diz Elaine Oliveira, mestre em Ciências Sociais e colaboradora do site Blogueiras Negras. A cultura torna-se arena política para o debate de apropriação, tribunal de guerra dos espólios coloniais.
O termo ‘apropriação’ é forte e contém em si uma conotação de “roubo” ou invasão. Entretanto, a presença da assimilação cultural já vem sendo estudada pela antropologia, conhecida também como “empréstimo cultural” e considerada como parte integrante das dinâmicas sociais e do contato entre as diferentes culturas e tradições. Em um mundo cada vez mais globalizado e conectado, em que o dono do restaurante japonês é português e a menina que usa adereços indianos é uma WASP, as fronteiras da apropriação são turvas e parecem negociáveis. Mas o são de fato? Por que as apropriações despertam agora como uma questão de relevância, mesmo em discussões em relação a indústria cultural?
O momento é, portanto, de questionamento dos etnocentrismos configurados pela história. Principalmente em relação aos privilégios, que se destacam na possibilidade do ator branco de se pintar de preto ou usar elementos asiáticos enquanto o contrário dificilmente acontece.
Por que a apropriação é tão relevante?
Em certos casos, a apropriação assume níveis ainda mais combatidos. Principalmente em meio a condições em que se pauta e debate o racismo e a xenofobia em diversos países. Nos papéis onde há apropriação há sempre uma relação com a opressão, na qual é possível evidenciar a posição do apropriador como oriundo de setores privilegiados.
A grande questão, nesse caso, é o etnocentrismo. Afinal, esses mecanismos de apropriação têm apenas um lado e papéis definidos. O que é mais contundente e combatido é justamente a ignorância e desconhecimento de causa ao tratar uma cultura diferente. Não só utilizar seus símbolos e ícones desprovidos de contexto, mas também usá-los como elementos e produtos postos à venda. É o caso dos instrumentos de luta que se firmaram historicamente através da resistência cultural e da defesa de certos grupos, como o exemplo dos adereços e tipos de cabelo, que se transformam também em elementos comoditizados pela moda.
“É uma questão puramente de estética pro público branco, que só se apropria de fatores culturais da população negra pra parecer cool, parece que estética é só aparência física, mas com a música é a mesma relação. Acho que hoje ela está mais presente, pelo menos no ambiente de Porto Alegre que é onde eu moro, nas festas com nome, música, aparência negra, mas com um público total de pessoas brancas. O que pra mim já automaticamente reflete no contexto Americano, tanto brasileiro quanto estadunidense, de música”, defende Irimara.
A própria conotação social já aponta essa grande desigualdade e o privilégio de certos setores. A expressão clara disso está na letra de Geraldo Filme, em “Vá Cuidar da Sua Vida”: “Crioulo cantando samba?/Era coisa feia/Esse é negro é vagabundo/Joga ele na cadeia/Hoje o branco tá no samba/Quero ver como é que fica/Todo mundo bate palmas/Quando ele toca cuíca/Vá cuidar…??/Nego jogando pernada?/Mesmo jogando rasteira/Todo mundo condenava/Uma simples brincadeira/E o negro deixou de tudo/Acreditou na besteira/Hoje só tem gente branca/Na escola de capoeira”.
E isso se estende também para as demais culturas. É o caso de ideogramas chineses utilizados no ocidente com um fundamento meramente estético. Ou, ainda, certos elementos da filosofia e religião de países asiáticos subvertidos em elementos comerciais e novas terapias desenvolvidas no ocidente. Na história os casos são inúmeros, com a dominação e conquista de novos territórios e a imposição da cultura da metrópole sobre eles. Ou, ainda, a chamada “cultura helenística” de Alexandre III da Macedônia. Entretanto, atualmente essas inserções brutais se dão de maneira muito mais indireta e com outras percepções. Elas estão principalmente vinculadas com a instância do capital, na inclusão de uma estética de moda vendável e lucrativa. Ela chega ao ponto da indumentária dos ativistas “Black Blocks” ser copiada em editoriais de moda.
Um novo colonialismo
Nas palavras de Juliana Ribeiro: “O grande perigo da apropriação cultural se dá quando alguém de fora passa ‘a falar em nome de’, distorcer os valores de uma cultura ou determinar o que o outro (geralmente uma minoria) deve fazer ou como agir. O fato é que sempre está em jogo uma relação de poder quando se fala em apropriação cultural”.
Diferentemente da assimilação ou do contato horizontal e frutífero entre as duas culturas, a apropriação trata muito mais de usos que não representam aqueles que propagam originalmente a cultura. No caso brasileiro, com fronteiras borradas pela teoria da mestiçagem, essa questão torna-se ainda mais delicada, principalmente na defesa dos apropriados.
É preciso entender, no entanto, que as culturas presentes no Brasil foram artificialmente amalgamadas na ideia de um território nacional e sob a premissa de uma formação cultural unificada. Ideia contraditória, principalmente tendo em vista as dimensões continentais e o modo brutal e desigual que essas culturas foram postas em um mesmo espaço físico. É preciso entender a diferença da chegada da cultura africana ao país, nos navios negreiros, sob o açoite e o pior dos abusos, a cultura indígena dizimada e expulsa de suas terras e a chegada posterior de imigrantes europeus, sob o viés de “embranquecimento” do país.
A velha ótica colonizatória não só se contenta com a convivência pacífica e harmônica, mas ainda mantém seu ideal de extorsão financeira e posse. É o caso dos elementos de outras culturas, que acabam por serem subjugados como elementos passíveis de compra e dominação por parte de um grupo opressor. É o caso dos índios brasileiros, estereotipados como vagabundos e expulsos de suas terras originais. Hoje, reproduções de seus utensílios e instrumentos musicais podem ser encontradas em feirinhas de artesanato, lojas de souvenirs, feitos geralmente por não indígenas. No próprio carnaval não é raro ver fantasias sendo vendidas em grandes lojas e diversas pessoas circulando com elas durante as festas.
A polêmica também está presente nos Estados Unidos, principalmente com o uso fashion de adereços indígenas em festivais de música, como o Coachella Music Festival. Por lá a discussão é pautada principalmente pelo comparativo com o “blackface” e todo o histórico de massacre e exploração desses povos, principalmente com a corrida pelo petróleo. A discussão fez com que surgissem até mesmo blogs que marcam a sátira e ironia para ressaltar essa apropriação. A exemplo, o “White People Wearing Headdresses”, traduzido como “Pessoas Brancas Usando Cocares”.
Já na Austrália, a questão envolveu ainda medidas mais drásticas. Os artistas aborígenes buscaram instituir marcas de autenticidade para suas obras tradicionais em contraponto às imitações crescentes feitas até mesmo por grandes marcas. Isso garantiria que seu trabalho fosse valorizado e o público comprasse uma peça autêntica. Já em 1999 essa marca se mostrou ainda mais relevante com a condenação de John O’Loughlin pela venda de objetos artísticos aborígenes pintados por não indígenas. Ao passo que essa população é ainda uma questão social não resolvida na Austrália, constituindo o setor mais marginalizado e em piores condições do país dos altos índices de qualidade de vida.
Fonte: http://www.usp.br/cje/babel/exibir2.php?edicao_id=13&materia_id=138
OS SEM-TETO E A APROPRIAÇÃO DE IMÓVEIS ABANDONADOS NOS GRANDES CENTROS URBANOS BRASILEIROS
Quem são os movimentos sem teto e por que eles fazem da invasão sua principal arma
Desabamento de edifício no centro de São Paulo chamou atenção para ocupação irregular de imóveis por famílias sem teto. Conheça alguns dos principais grupos que lutam por moradia digna
A tragédia ocorrida na madrugada do dia 1º de maio em São Paulo, quando o edifício Wilton Paes de Almeida desabou após um incêndio, chocou o país não apenas pelo desaparecimento de quatro pessoas, mas pela informação de que as famílias que moravam ali pagavam ‘aluguel’ a um grupo que se apresenta como defensor dos sem-teto. O prédio foi invadido pelo Movimento Luta por Moradia Digna, que cobrava taxas mensais entre R$ 250 e R$ 500, segundo as próprias famílias que ficaram desalojadas após o edifício no Largo Paissandu vir abaixo.
O episódio joga luz sobre a atuação de movimentos urbanos sem teto que atuam principalmente nas grandes capitais do país. Carta assinada por alguns desses movimentos e divulgada nesta quarta-feira (2) questiona o que classifica como tentativa de criminalização dos moradores do edifício e reforça a ideia de que “enquanto morar for um privilégio, ocupar é um direito”.
“As famílias que vivem em ocupações são vítimas do descaso, da irresponsabilidade do Estado e da especulação imobiliária”, apresenta o texto. “Não é a primeira e não será a última tragédia, enquanto o investimento público para o enfrentamento do problema habitacional não for significativo e comprometido com o acesso à moradia como um direito”, informa.
A luta destes grupos para que se cumpra o que garante o artigo 6º da Constituição Federal – que dispõe sobre a moradia e a assistência aos desamparados como direito social – se dá na maioria dos casos por meio das ocupações, realizadas pelos movimentos populares, como a ocorrida no edifício que um dia foi sede da Polícia Federal em São Paulo.
Segundo estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) divulgado no ano passado, em 2015 o déficit habitacional brasileiro atingiu 7,7 milhões de domicílios. Em São Paulo, primeira no ranking, a carência é de 1,6 milhão de residências, ou 21% do país. A pesquisa analisa o período de implantação do programa Minha Casa Minha Vida, criado em 2009 e que não foi suficiente para eliminar o problema da habitação no país, embora tenha construído 4,5 milhões de unidades desde a sua criação, sendo 3,2 milhões voltados à população de baixa renda.
Conheça os principais movimentos que atuam na luta por moradia
Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST)
Criado em 1997, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) se define como um movimento territorial porque organiza trabalhadores urbanos a partir da periferia. E encontram na luta por moradia a principal razão para existir, mas atuam também, segundo informa o movimento, por educação, saúde, transporte coletivo e infraestrutura básica nos bairros onde atuam. É ligado a outros movimentos, como o dos Trabalhadores Sem Terra (MST), Movimento Passe Livre (MPL), Periferia Ativa, Movimento Sem Teto da Bahia (MSTB) e ao Movimento por Moradia – Curitiba, entre outros.
Pré-candidato à presidência da República pelo PSOL, Guilherme Boulos é o coordenador do MTST. Filho de médicos, formado em Filosofia pela USP com especialização em Psicologia e mestrado em Psiquiatria, chegou a ser detido em janeiro do ano passado na ocupação Colonial, na zona leste de São Paulo, durante a reintegração de posse do terreno, onde viviam cerca de 700 famílias.
Para o MTST, as ocupações são “o grito de um povo que não suporta mais viver calado em seus buracos, que não suporta ter que escolher entre comer e pagar aluguel nem continuar sofrendo humilhações por viver de favor na casa de alguém”, conforme texto publicado no site do movimento. O bloqueio a rodovias e avenidas é outra maneira escolhida pelo movimento, que enxerga, nessa atividade, uma “forma de chamar atenção para as reivindicações dos trabalhadores”. Ao se denominar inimigo do capitalismo, afirma que outra função dos bloqueios é a de “gerar um imenso prejuízo aos capitalistas”, informa.
Em nota divulgada pelas redes sociais, o movimento deixou claro, entre outras coisas, que é composto por famílias vítimas do aluguel, do puxadinho ou da moradia precária, que não faz cobrança de taxa em suas ocupações, que foca suas ações em terrenos abandonados, sem função social e, em geral, nas periferias, e que sua ação nasce da luta por moradia digna, direito garantido na Constituição Federal de 1988.
Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM)
Criado em julho de 1990 no 1º Encontro Nacional dos Movimentos de Moradia, conta com representações em pelo menos 14 estados. Encontra em entidades como o Conselho Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Central de Movimentos Populares, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o MST apoiadores da causa.
Em março deste ano, o movimento se uniu a outras organizações na ocupação da sede do Ministério das Cidades, em Brasília. O objetivo da ação foi protestar contra o que os movimentos classificaram como falta de transparência da Portaria 162, de 28 de fevereiro deste ano, que apresentou os resultados da seleção de projetos habitacionais para contratação do programa Minha Casa Minha Vida.
No ano passado, o MNLM participou da ocupação da sede da Caixa Econômica Federal, no Rio de Janeiro. Em 2006, 60 famílias ligadas ao movimento tomaram um prédio em Porto Alegre que teria sido alugado por uma facção criminosa, com objetivo de, a partir dele, assaltar agências bancárias próximas por meio de um túnel subterrâneo.
Movimento Luta por Moradia Digna (LMD)
O LMD era o responsável pela ocupação no edifício Wilton Paes de Almeida. Segundo informações prestadas pelo coordenador do movimento, Ricardo Luciano, ao jornal O Estado de S.Paulo, os moradores contribuíam com R$ 80 para manutenção dos serviços de manutenção. Mas ainda de acordo com a publicação, integrantes do Movimento de Luta Social por Moradia (MLSM) afirmaram que a taxa variava entre R$ 250 e R$ 500.
Ao portal BuzzFeed News, boa parte dos moradores informou que pagava R$ 210 aos coordenadores do movimento. E que, ainda que fosse um pagamento obrigatório, pelo menos uma moradora relatou que parou de pagar e permaneceu como moradora do prédio. A Folha de S.Paulo apurou que, além das taxas, moradores apresentaram carnês e recibos, e alguns integrantes da ocupação informaram que o movimento chegava a cobrar juros.
A Gazeta do Povo não conseguiu contato com a liderança do LDM. Diferentemente de outros semelhantes, o movimento não tem um site nem conta com perfis em redes sociais.
Frente de Luta por Moradia
No dia 15 de outubro de 2017, a Frente de Luta por Moradia (FLM) publicou uma carta aberta em seu site, destinada a “excelências do Executivo, Legislativo e Judiciário” e a “homens e mulheres de bem”, em que informava que centenas de famílias sem tetos, incluindo homens, mulheres, jovens e idosos, organizados pelo movimento, realizaram em diversas comunidades em São Paulo “várias ocupações de terras e prédios”. Segundo o documento, as propriedades estavam “fora da lei” por não cumprirem “sua função social.
A carta, com o título “Sem tetos querem terras e prédios abandonados para construir, reformar e morar”, pedia que os imóveis fossem requisitados pelo poder público para que estivessem à disposição das famílias sem teto. “É uma marcha justa para o futuro de nossas famílias”, concluía o documento.
No ano passado, em parceria com a União dos Movimentos de Moradia, conseguiu, a partir da formação de uma chapa, eleger um representante para participar do Conselho Municipal de Política Urbana (CMPU), da Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento da Prefeitura de São Paulo.
A FLM tem como parceira a Central de Movimentos Populares, ligada ao PT e que congrega diversos movimentos. E junto com a Associação Sem Teto do Centro (ASTC), e Movimento de Moradia da Região do Centro (MMRC), integram a Ocupação Mauá, que está há mais de dez anos em um prédio no centro de São Paulo. Segundo o coordenador do movimento, Osmar Borges, a FLM conta com “15 ocupações e mais de 4 mil moradores cadastrados”.
União Nacional por Moradia Popular (UNMP)
Criada em 1989, a UNMP organiza movimentos populares de moradia a partir dos estados. Neles estão movimentos de sem-teto, cortiços, favelas, loteamentos, mutirões e ocupações. O movimento tomou corpo a partir do processo de coletas de assinaturas para o Primeiro Projeto de Lei de Iniciativa Popular, que criou o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS), o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) e o Conselho Gestor do fundo.
O movimento defende a autogestão, o direito à moradia e à cidade e a participação popular nas políticas públicas. Se define ainda radicalmente contra os despejos e informa, em seu site, que sua atuação se traduz em “reivindicações, lutas concretas e propostas dirigidas ao poder público nas três esferas de governo”, por meio de “negociações e ações propositivas, sem deixar de lado as ferramentas de luta e pressão do movimento popular”.
Organizações coletivas ou movimentos sociais?
Andrea Braga, professora do Núcleo de Direitos Humanos e do curso de Serviço Social da PUC-PR, defende que é importante separar o que são movimentos sociais do que classifica de organizações coletivas, que em muitos casos atuam com os mesmos objetivos.
A especialista lembra que movimentos como o MNLM, o UNMP e o Conam, por exemplo, por sua articulação na luta por moradia e seu diálogo com o governo, conseguiram, por exemplo, contribuir para a elaboração do programa Minha Casa Minha Vida. As organizações participam do Fórum Nacional de Reforma Urbana, que reúne também organizações não governamentais, instituições de pesquisa e associações de classe com objetivo de lutar por políticas que garantam moradia de qualidade, água e saneamento, transporte acessível e eficiente.
“O movimento social tem essa característica de definição de bandeiras e princípios, para criar mobilizações por determinadas pautas coletivas”, analisa Andrea. E contam com a possibilidade de interlocução com agentes do governo para apresentar suas reivindicações.
Já movimentos como o LDM, que liderou a ocupação no prédio que desabou no dia 1º, na visão da professora integram uma rede articulada de coletivos, “que compõem a defesa do que entendemos como direito a moradia, que está previsto constitucionalmente”, pondera. Para ela, ainda que de maneiras diferentes, tantos os movimentos sociais quanto as organizações coletivas acabam por defender a mesma ideia de dar a terrenos e prédios desocupados um tipo de função social – no caso das ocupações, a de moradia popular.
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