Geração de 30: a prosa de Graciliano, Rachel e Amado
A quebra da Bolsa de Nova Iorque, em 1929, foi a mais devastadora crise econômica enfrentada pelo sistema capitalista, não só por seus efeitos materiais, como a recessão e o desemprego, mas também pelo aspecto psicológico: um mundo extremamente pessimista e sem perspectivas.
MOMENTO HISTÓRICO
Talvez por isso muitos historiadores chamem o período de “Grande Depressão”.
A década de 30 surge trazendo a guerra, a catástrofe, a falta de liberdade. Os felizes e – até mesmo – ingênuos anos 20 são engolidos por regimes autoritários, tensões e uma sensação de morte e extermínio iminentes.
A democracia passa a ser questionada, afinal, nos Estados Unidos – maior exemplo mundial daquela ordem social – milhões de pessoas vagavam pelas ruas na mais profunda pobreza em busca de um emprego. A “terra das oportunidades” parecia um sonho que se acabava: miséria, fome e desemprego em um cenário de colapso industrial. Assim, os regimes fechados, como o fascismo italiano, o nazismo alemão e o estalinismo soviético apareciam como a nova ordem mundial.
Os intelectuais, percebendo a crise burguesa e sua incapacidade de apresentar soluções para o mundo, não se furtam de optar pelo fascismo – aqueles ligados ao progresso, à ordem e aos valores de pátria e família – ou pelo comunismo – buscando uma sociedade igualitária, sem privilégios para as elites.
No Brasil, a Revolução de 1930 foi fruto das tensões vividas na década anterior, repleta de revoltas e insatisfações. É também a resposta nacional à crise mundial que assolava o planeta, buscando conciliar os mais diversos grupos sociais e interesses da época, como os tenentes, a classe média, o incipiente proletariado urbano e as oligarquias regionais.
De fato, o século XX começa para o Brasil em 1930: é o surgimento do país tal qual como conhecemos hoje. O Estado passa a responder – ainda que de maneira intervencionista – às questões sociais, surgindo um pensamento progressista, de industrialização, de proteção aos direitos dos trabalhadores e de educação universal. São vários os estatutos e leis que fazem desta intervenção um movimento apoiado pela população.
A censura de Vargas calou a oposição, em especial a intelectualidade. Jorge Amado, Monteiro Lobato, Graciliano Ramos e Érico Veríssimo entre outros, foram perseguidos, saíram do país ou foram presos. Outros intelectuais, no entanto, acabaram por aderir ao Estado Novo, ocupando cargos burocráticos no governo (especialmente nas áreas de cultura e educação), levando adiante projetos do próprio Executivo ou produzindo espetáculos voltados à exaltação da pátria.
A ESTÉTICA DA ÉPOCA
Com toda a turbulência por que passava o mundo na década de 30, o experimentalismo estético característico das vanguardas foi deixado de lado, voltando-se a uma visão mais realista do passado, na busca de ser melhor compreendida pela massa de pessoas que não possuíam alto grau de instrução. A arte busca um entendimento imediato, sem grandes problemas de reflexão e, até mesmo, explorando sua função propagandística. A criação se submetia, então, à ideologia.
Desta forma, podemos encontrar nas manifestações artísticas do período releituras de um realismo, ora atrelado às ideologias ditatoriais, ora de caráter proletário – sobretudo na América Latina –, ora de um teor psicológico, pronto para analisar o indivíduo e sua relação com a sociedade.
Em todas essas manifestações podemos encontrar pontos em comum, como a rejeição do vanguardismo e de seu experimentalismo; a necessidade de imitação do real, com foco na verossimilhança; e o caráter de denúncia social.
Diferentemente da geração de 22, que pregava prioritariamente uma revolução estética, influenciada pelas vanguardas europeias, a geração de 30 busca o aprofundamento nas questões sociais e ideológicas.
A ideia de uma função social e política da literatura era algo comum aos autores da geração. O escritor deveria pensar a sociedade, funcionar como sua consciência. Essa preocupação com a nação, de contribuição com a grandeza da pátria, data do Romantismo, mas, para a geração de 30, havia profundas diferenças nos objetivos: a mudança das estruturas sociais e a busca de uma conscientização da nação.
Dessa forma, as obras propõem “interpretações do Brasil”, voltando-se à formação do povo brasileiro, as relações sociais que se estabelecem nas diversas regiões, das análises sobre a miscigenação, racismo entre outros temas. O país passa por uma análise na pena dos novos escritores.
Entre as características mais marcantes da estética do período, podemos perceber que os autores inspiraram-se em modelos realistas, enfatizando em suas obras aspectos como a valorização da verossimilhança, a construção de uma narrativa linear, a retratação da realidade histórica e social, o uso de personagens que representassem classes sociais e, por fim, a universalidade na construção do mundo.
A partir dessas características, percebe-se claramente que a denominação “modernismo de segunda fase” não se aplica à produção da prosa literária pós-semana de 22. Não houve, no Brasil, um movimento modernista; em verdade, a semana de 22 representou uma ruptura de vanguarda que influenciou a construção estética posterior, sem, contudo, criar novos modelos e paradigmas a serem seguidos.
O romance de 30 dialoga com autores pré-modernistas, recupera suas visões regionais e interage de forma muito intensa com os padrões artísticos do realismo. Isso não significa que a geração não tenha se aproveitado de conquistas do movimento vanguardista brasileiro de 22: a liberdade de expressão, o estilo direto e a simplicidade da escrita – repleta de coloquialismos – são marcas estéticas herdadas de seus antecessores. O foco da construção literária é que os diferencia. Se os modernistas de 22 atinham-se à ruptura estética e demonstravam grande preocupação com a forma; os romancistas de 30 revisitam o realismo em busca dos temas sociais, explorados à luz de novas ideologias, de um novo contexto social e expressos em liberdade estética inigualável.
Encontram-se, no período, obras de temática agrária, retratando um universo rural decadente ou mesmo já inexistente. A exploração de temas como o coronelismo e a denúncia da opressão dos trabalhadores rurais e o conflito entre os dos países dentro de um mesmo Brasil: o país agrário, de mentalidade fundiária, em contraposição com o país urbano, moderno e em desenvolvimento.
São igualmente comuns o tratamento crítico aos temas, desde o processo de conhecimento do flagelo da seca ao questionamento ideológico; do atraso do pensamento latifundiário à miséria dos campos. Em alguns casos, o tom de nostalgia e memorial são o elemento-chave da narrativa, bem como a composição de verdadeiras exaltações a tipos e regiões.
A temática urbana aparece sob a forma de denúncia da modernidade e de suas consequências, ou como a impotência diante da nova sociedade ou ainda como um processo de adesão crítica à nova realidade. Em geral, as obras dão ênfase às classes sociais e aos dramas do indivíduo, tomado a partir de sua tipificação social. Assim, as camadas mais populares, os trabalhadores, as personagens marginalizadas e a pequena burguesia surgem como protagonistas dessa fase.
Vale ressaltar que o rótulo de romance regionalista não contempla a diversidade da produção dos autores da época. É evidente que há a nítida preocupação local nas obras do período, mas é também evidente que se universaliza o tema para discutir a sociedade e o país, dentro de óticas localizadas. Ainda assim, é importante lembrar que há romances rurais e urbanos, não sendo correto imaginar o termo “regional” como aplicável apenas ao interior e ao sertão.
PRINCIPAIS AUTORES
Rachel de Queiroz
Rachel de Queiroz nasceu em Fortaleza, em 17 de novembro de 1910. Filha de latifundiários, passou sua infância e adolescência entre a capital do Ceará, o Rio de Janeiro, Belém do Pará e a fazenda do pai. Desde cedo, apresentava-se muito culta, devido, principalmente, a seu ambiente familiar. Aos quinze anos, já colaborava com a imprensa cearense. Com apenas vinte anos, lançou sua principal obra, O quinze, um marco na história da literatura, apresentando uma mulher escritora, dona de uma narrativa de apelo social. Comunista radical, foi politicamente ativa até meados dos anos 40, quando foi se tornando mais conservadora, chegando até mesmo a apoiar o regime militar nas décadas de 60 e 70 – a quem serviu como delegada na Assembleia Geral da ONU em 1966. Em 1977, rompe mais um preconceito e torna-se a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras. Tradutora de diversas obras, contribui com inúmeros jornais até a sua morte, aos 92 anos, em 4 de novembro de 2003, em sua casa no Rio de Janeiro.
Esteticamente, suas narrativas sintetizam bem o espírito da geração de 30, valorizando o universo regional, pregando a ideologia modernizadora, enfatizando aspectos sociológicos da realidade e introduzindo os conceitos de subdesenvolvimento na análise de nossa sociedade.
Apresenta em O quinze talvez a primeira ideia feminista da literatura nacional: conta a história da busca de uma mulher por sua identidade, o que a faz recusar o casamento, refletir sobre as relações entre o espaço urbano e o rural. Faz uma profunda análise do sertão e da seca e como se constrói a imagem de país dentro de uma sociedade absolutamente patriarcal. Sua obra esbarra, contudo, em uma falta de percepção sobre as causas da miséria e das mazelas do sertão, atribuindo tais problemas às forças da natureza, ignorando as razões políticas de tais problemas.
TRECHO DE O QUINZE
Depois de se benzer e de beijar duas vezes a medalhinha de São José, dona Inácia concluiu:
“Dignai-vos ouvir nossas súplicas, ó castíssimo esposo da
Virgem Maria, e alcançai o que rogamos. Amém.”
Vendo a avó sair do quarto do santuário, Conceição, que fazia
as tranças sentada numa rede ao canto da sala, interpelou-a:
– E nem chove, hein, Mãe
Nácia? Já chegou o fim do mês… Nem
por você fazer tanta novena…
Dona Inácia levantou para o telhado os olhos confiantes:
– Tenho fé em São José que ainda chove! Tem-se visto inverno começar até em abril.
Na grande mesa de jantar onde se esticava, engomada, uma
toalha de xadrez vermelho, duas xícaras e um bule, sob o abafador
bordado, anunciavam a ceia:
– Você não vem tomar o seu café com leite, Conceição?
A moça ultimou a trança, levantou-se e pôs-se a cear, calada,
abstraída.
A velha ainda falou em alguma coisa, bebeu um gole de café e
foi fumar no quarto.
A bênção, Mãe Nácia! – E Conceição, com o farol de querosene
pendendo do braço, passou diante do quarto da avó e entrou no
seu, ao fim do corredor.
Colocou a luz sobre uma mesinha, bem junto da cama – a velha
cama de casal da fazenda – e pôs-se um tempo à janela, olhando o
céu. E ao fechá-la, porque soprava um vento frio que lhe arrepiava
os braços, ia dizendo:
– Eh! A lua limpa, sem lagoa! Chove não!…
Foi à estante. Procurou, bocejando, um livro. Escolheu uns
quatro ou cinco, que pôs na mesa, junto ao farol.
Aqueles livros – uns cem, no máximo – eram velhos
companheiros que ela escolhia ao acaso, para lhes saborear um
pedaço aqui, outro além, no decorrer da noite.
Deitou-se vestida, desapertando a roupa para estar à vontade.
Pegou no primeiro livro que a mão alcançou, fez um monte de
travesseiros ao canto da cama, perto da luz, e, fincando o cotovelo
neles, abriu à toa o volume.
Era uma velha história polaca, um romance de Sienkiewicz,
contando casos de heroísmos, rebeliões e guerrilhas.
Conceição o folheou devagar, relendo trechos conhecidos, cenas
amorosas, duelos, episódios de campanha. Largou-o, tomou os
outros – um volume de versos, um romance francês de Coulevain.
E ao repô-los na mesa, lastimava-se:
– Está muito pobre essa estante! Já sei quase tudo decorado!
Levantou-se, foi novamente ao armário. E voltou com um grosso
volume encadernado que tinha na lombada, em letras de ouro, o
nome de seu finado avô, livre-pensador, maçom e herói do Paraguai.
Era um tratado em francês, sobre religiões. Bocejando,
começou a folheá-lo. Mas, pouco a pouco, qualquer coisa a
interessou. E, deitada, à luz vermelha do farol, que ia enegrecendo
o alto da manga com a fumaça preta, na calma da noite sertaneja,
enquanto no quarto vizinho a avó, insone como sempre, mexia as
contas do rosário, Conceição ia se embebendo nas descrições de
ritos e na descritiva mística, e soletrava os ásperos nomes com que
se invocava Deus, pelas terras do mundo.
Até que dona Inácia, ouvindo o cuco do relógio cantar doze
horas, resmungou de lá:
– Apaga a luz, menina! Já é meia-noite!
Graciliano Ramos
Nascido na pequena cidade de Quebrângulo, no interior de Alagoas, aos 27 de outubro de 1892, Graciliano Ramos foi o primeiro dos quinze filhos de sua família. Sem jamais ter cursado o nível superior, completou os estudos secundários em Maceió.
Mudou-se com a família para Palmeira dos Índios, ainda em Alagoas, e posteriormente rumou para o Rio de Janeiro vindo a atuar como revisor de alguns periódicos da cidade. Após esse breve tempo, retornou a Palmeira dos Índios, ajudando seu pai em seu comércio. Em 1927 elegeu-se prefeito da cidade, e, mais tarde, acabou por assumir a direção da Imprensa Oficial e da Instrução Pública do Estado em Maceió.
Em 1933 faz sua estreia literária publicando o romance Caetés. No ano seguinte, publica São Bernardo e dois anos mais tarde, Angústia. Em 1936, foi preso pelo governo Getúlio Vargas, acusado de participação em movimentos de esquerda. Sua passagem por diversos presídios rendeu experiências que foram contadas em seu livro Memórias do Cárcere, publicado somente após sua morte. Um ano após ser solto, em 1938, publica aquela que seria considerada sua obra-prima: Vidas Secas.
A partir daí, Graciliano Ramos mudou-se em definitivo para o Rio de Janeiro, trabalhando na área da educação. Filiado ao Partido Comunista brasileiro, visitou diversos países socialistas do leste europeu, contando suas impressões no livro Viagem, publicado também após sua morte, ocorrida em 20 de março de 1953.
Graciliano é dono de um estilo enxuto e de uma escrita bastante densa. Frases curtas, orações simples e mesmo um vocabulário limitado são formas de representar seus personagens, que muito têm em conflitos internos, porém pouco falam. São muitos significados com o mínimo de palavras, levando o autor a utilizar-se com frequência do discurso indireto livre, levando pensamento, fala e reflexão a um mesmo plano expressivo. Apesar de boa parte de suas histórias se passar no sertão nordestino e expor as mazelas da seca e da fome, não se pode resumir suas obras à mera denúncia social. As questões internas das personagens, as relações interpessoais e sociais e a problemática que envolve a vida de maneira geral são elementos imprescindíveis ao entendimento de suas obras.
Nos escritos de Graciliano, os temas ligados ao enredo, como o meio social ou a problemática político-econômico, não predominam sobre as personagens, como costuma ocorrer nos autores do período. Em seus trabalhos, o indivíduo surge dentro de sua realidade regional – expondo problemas e mazelas –, mas sua trajetória não se esconde por detrás destes temas.
TRECHO DE VIDAS SECAS
Foram descansar sob os garranchos de uma quixabeira, mastigaram punhados de farinha e pedaços de carne, beberam na cuia uns goles de água. Na testa de Fabiano o suor secava, misturando-se à poeira que enchia as rugas fundas, embebendo-se na correia do chapéu. A tontura desaparecera, o estômago sossegara. Quando partissem, a cabaça não envergaria o espinhaço de Sinhá Vitória. Instintivamente procurou no descampado indício de fonte. Um friozinho agudo arrepiou-o. Mostrou os dentes sujosnum riso infantil. Como podia ter frio com semelhante calor? Ficou um instante assim besta, olhando os filhos, olhando os filhos, a mulher e a bagagem pesada. O menino mais velho esbrugava um osso com apetite. Fabiano lembrou-se da cachorra Baleia, outro arrepio correu-lhe a espinha, o riso besta esmoreceu.
Se achassem água ali por perto, beberiam muito, sairiam cheios, arrastando os pés. Fabiano comunicou isto a Sinhá Vitória e indicou uma depressão do terreno. Era um bebedouro, não era? Sinhá Vitória estirou o beiço, indecisa, e Fabiano afirmou o que havia perguntado. Então ele não conhecia aquelas paragens? Estava a falar variedades? Se a mulher tivesse concordado, Fabiano arrefeceria, pois lhe faltava convicção; como Sinhá Vitória tinha dúvidas, Fabiano exaltava-se, procurava incutir-lhe coragem. Inventava o bebedouro, descrevia-o, mentia sem saber que estava mentindo. E Sinhá Vitória excitava-se, transmitia-lhe esperanças. Andavam por lugares conhecidos. Qual era o emprego de Fabiano? Tratar de bichos, explorar os arredores, no lombo de um cavalo. E ele explorava tudo. Para lá dos montes afastados havia outro mundo, um mundo temeroso; mas para cá, na planície, tinha de cor plantas e animais, buracos e pedras.
E andavam para o Sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. Eles dois velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inúteis, acabando-se como Baleia. Que iriam fazer? Retardaram-se temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos.”
Jorge Amado
Nascido em 10 de agosto de 1912, em uma fazenda na cidade de Itabuna, Bahia, Jorge Amado passou a infância com sua família entre Ilhéus, cidade que acabou palco de alguns de seus romances, e Salvador, outra cidade retratada em seus escritos. Já aos dezoito anos, viaja ao Rio de Janeiro a fim de cursar a Faculdade de Direito e acaba por trabalhar em jornais da capital. Publica seu primeiro romance, O País do Carnaval, em 1931, seguido de Cacau, publicado dois anos mais tarde. Neste último, busca retratar as questões sociais envolvidas no cultivo do cacau e a obra acaba censurada e apreendida. Influenciado por sua ideologia marxista, Amado publica diversas obras com a temática urbana, mas sempre retratando questões sociais, políticas e mesmo religiosas (Jorge era frequentador do Candomblé e tinha vários pais de santo como grandes amigos). Suor, Jubiabá, Mar Morto e Capitães de Areia são exemplos de obras do período.
Não tardou muito para que a ditadura de Vargas lhe censurasse os livros (houve exemplares de Capitães de Areia queimados em praça pública) e enviasse-lhe à prisão por conta de suas posições políticas. Em 1941, sob a intensa perseguição do Estado Novo, exila-se na Argentina. Após a queda de Vargas, retorna ao país e elege-se deputado federal pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), participando ativamente da Assembleia Constituinte, até que seu mandato seja cassado com a perseguição que pôs o PCB na ilegalidade.
Passa quase dez anos em diversos países socialistas, até que em 1958, já de volta ao Brasil, publica Gabriela, Cravo e Canela, sua obra mais popular. Membro da Academia Brasileira de Letras e vencedor de inúmeros prêmios literários, chegou a ser o autor brasileiro mais traduzido no planeta e teve muitas de suas obras adaptadas para o cinema e para a televisão. No dia 6 de agosto de 2001, faleceu na cidade de Salvador.
Apesar de não ser unanimidade entre os críticos, que apontam problemas como estereótipos, descuido formal e mesmo a falta de originalidade em muitas das obras, as quais dizem seguir uma fórmula, Jorge Amado sempre gozou de um público bastante cativo. Suas obras têm cunho ideológico bem marcado de denúncia social, revelam o regionalismo do interior da Bahia e trazem personagens marginalizados ao protagonismo. Seus temas tratam da miséria, da seca, do coronelismo, da opressão e da organização popular para resistir. Retrata menores de rua, pescadores, trabalhadores urbanos e rurais e o cangaço.
Descreve a religiosidade miscigenada do povo e introduz uma sensualidade natural, sem moralismos em suas histórias. Sua escrita simples, repleta de oralidade, representa uma aproximação à realidade dos enredos. Em sua fase final, sem esquecer o humor e a crítica peculiares, escreve verdadeiras crônicas de costumes, muitas delas transformadas em filmes ou novelas de tevê.
TRECHO DE CAPITÃES DE AREIA
João Grande passa por debaixo da ponte – os pés afundam na areia – evitando tocar no corpo dos companheiros que já dormem. Penetra no trapiche. Espia um momento indeciso até que nota a luz da vela do Professor. Lá está ele, no mais longínquo canto do casarão, lendo à luz de uma vela. João Grande pensa que aquela luz ainda é menor e mais vacilante que a da lanterna da Porta do Mar e que o Professor está comendo os olhos de tanto ler aqueles livros de letra miúda. João Grande anda para onde está o Professor, se bem durma sempre na porta do trapiche, como um cão de fila, o punhal próximo da mão, para evitar alguma surpresa.
Anda entre os grupos que conversam, entre as crianças que dormem, e chega para perto do Professor. Acocora-se junto a ele e fica espiando a leitura atenta do outro.
João José, o Professor, desde o dia em que furtara um livro de histórias numa estante de uma casa da barra, se tornara perito nestes furtos. Nunca, porém, vendia os livros, que ia empilhando num canto do trapiche, sob tijolos, para que os ratos não os roessem. Lia-os todos numa ânsia que era quase febre. Gostava de saber coisas e era ele quem muitas noites, contava aos outros histórias de aventureiros, de homens do mar, de personagens heroicos e lendários, histórias que fazia aqueles olhos vivos se espicharem para o mar ou para as misteriosas ladeiras da cidade, numa ânsia de aventuras e de heroísmo. João José era o único que lia correntemente entre eles e, no entanto, só estivera na escola ano e meio. Mas o treino diário da leitura despertara completamente sua imaginação e talvez fosse ele o único que tivesse uma certa consciência do heroico das suas vidas.
Aquele saber, aquela vocação para contar histórias, fizera-o respeitado entre os Capitães da Areia, se bem fosse franzino, magro e triste, o cabelo moreno caindo sobre os olhos apertados de míope. Apelidaram-no de Professor porque num livro furtado ele aprendera a fazer mágicas com lenços e níqueis e também porque, contando aquelas histórias que lia e muitas que inventava, fazia a grande e misteriosa mágica de os transportar para mundos diversos, fazia com que os olhos vivos dos Capitães da Areia brilhassem como só brilham as estrelas da noite da Bahia.
Pedro Bala nada fazia sem o consultar e várias vezes foi a imaginação do Professor que criou os melhores planos de roubo. Ninguém sabia, no entanto, que um dia, anos passados, seria ele quem haveria de contar em quadros que assombrariam o país a história daquelas vidas e muitas outras histórias de homens lutadores e sofredores. Talvez só o soubesse Don’Aninha, a mãe do terreiro da Cruz de Opô Afonjá, porque Don’Aninha sabe de tudo que Yá lhe diz através de um búzio nas noites de temporal.
João Grande ficou muito tempo atento à leitura. Para o negro aquelas letras nada diziam. O seu olhar ia do livro para a luz oscilante da vela, e desta para o cabelo despenteado do Professor. Terminou por se cansar e perguntou com sua voz cheia e quente:
_ Bonita, Professor?
Professor desviou os olhos do livro, bateu a mão descarnada no ombro do negro, seu mais ardente admirador:
_ Uma história zorreta, seu Grande _ seus olhos brilhavam.
(AMADO, Jorge. Capitães da Areia; romance.
Rio de Janeiro: Record, 2000)