Movimentos poéticos pós-modernistas
A partir da década de 60, o mundo sofreu enormes transformações e tensões.
MOMENTO HISTÓRICO
A Guerra Fria atingia seu auge com a crise dos mísseis e com a construção do muro de Berlim; a tecnologia dava saltos sem precedentes e a televisão se propagava como meio de comunicação de massa, transmitindo, ao vivo, o feito da chegada do homem à Lua. O planeta não era mais suficiente às ambições humanas e o espaço tornava-se a fronteira final. Avanços científicos, produção de armas nucleares e de destruição em massa entre outras produções marcaram o cenário do final do século XX.
As manifestações sociais ganhavam cada vez mais espaço: na França, o Maio de 68 quase leva o país a uma revolução, e nos Estados Unidos surgem reações à guerra do Vietnã. Fortalecem-se os movimentos pacifistas e antimilitaristas. A luta pela igualdade racial nos Estados Unidos faz nascer um mártir: o ativista pelos direitos civis Martin Luther King é assassinado em 1968.
Na cultura, o rock´n´roll produz fenômenos, como os Beatles e os Rolling Stones que enlouquecem jovens do mundo inteiro. Um pouco depois, o movimento hippie prega a paz e o amor, aliando-se à luta pela paz mundial. Woodstock, o maior festival de música já realizado até aquele momento, reúne meio milhão de jovens em três dias de celebração artística, levando a contracultura ao seu ponto máximo.
No Brasil, a renúncia de Jânio Quadros à presidência da República gera enorme turbulência. O vice, João Goulart, de caráter esquerdista, assume em meio a uma profunda crise que se instala. Em março de 1964, o regime militar põe fim ao governo Jango, iniciando a ditadura militar, tempo de censura, perseguições e torturas.
Para compensar a censura e as exceções, é implementada uma política desenvolvimentista, um período que ficou conhecido como “o milagre econômico”. Contudo, em meados da década de setenta, a situação econômica do país começa a dar sinais de crise: inflação, desvalorização da moeda, falta de lastro, descontrole dos gastos públicos e alto endividamento governamental, com diversos desvios de execuções orçamentárias e desperdício em obras grandiosas, como a estrada transamazônica.
A ESTÉTICA DO PERÍODO
A poesia concreta
Em 1956, o mais controverso movimento vanguardista nacional apresentou-se na Exposição Nacional de Arte Concreta. O concretismo representava um ataque contra os poetas da geração de 1945, acusados de subjetivismo, formalismo e criticados por sua incapacidade de expressar a realidade moderna pós-guerra vivida pelo mundo. O desenvolvimentismo implementado pelo governo Juscelino Kubitschek representou uma grande mudança na paisagem urbana de São Paulo. A velocidade e a modernidade inspiraram os concretistas a adotar modelos modernistas de vanguarda, especialmente os de estilo oswaldiano, de poesia sintética, veloz, ágil, os “poemas-pílula”.
Sua proposta principal, contudo, era integrar som, imagem e o sentido das palavras. Assim, a nova proposta é uma arte poética visual, lúdica e interativa, usando aquilo que de mais ousado pudessem usar. A tendência, viva até os dias atuais, ainda abusa das tecnologias de comunicação, apropriando-se de hipertextualidades, das imagens de clipes, das edições e cortes e da própria internet. A arte é transdisciplinar e a poesia mistura-se ao design, à arquitetura, às artes plásticas, à música e ao movimento.
Seu experimentalismo poético era racional e planejado, propondo a abolição do verso tradicional, eliminação de conectivos e relações sintáticas elaboradas, deixando ao verso sua composição crua e concreta de substantivos e verbos. Apresentam uma linguagem sintética, dinâmica, ágil, preocupada em acompanhar a velocidade do desenvolvimento urbano; buscam a criação de palavras, exploração morfológica de seus constituintes, como prefixos e sufixos, fragmentação da linguagem, uso ambivalente dos vocábulos, com a exposição de palavras soltas, visualmente integradas ao poema, transformando o todo em um objeto visual, fazendo do poema algo para ser lido, mas, sobretudo, visto.
Outros movimentos
O concretismo e o neoconcretismo anunciavam uma ruptura com os modelos tradicionais de produção. Contudo, tais “rebeldias” pertenciam apenas ao universo estético, originando uma poesia ideologicamente alienada. De uma cisão do movimento, surge a Poesia Práxis, autodenominando-se como “vanguarda nova”. Representa uma tentativa de síntese ou compromisso entre as duas maiores tendências da poesia dos anos 60: a “participação social” e a “vanguarda”, isto é, o formalismo programático.
Esteticamente, o poema assume um caráter auto demonstrativo, explicitando sua própria dinâmica formal. Assim, de uma forma geral, as combinações formais da poesia tornam-se previsíveis, engessando suas próprias construções.
Entretanto, a principal colaboração da escola é a ideia do “participante” ou “social”. É na temática que reside sua maior importância, denunciando a desumanidade da vida moderna, o capitalismo, a exploração do operariado e do campesinato, etc.
Surge, assim, uma época de poesias “engajadas”, de denúncia da injustiça social, da falta de liberdade, da tortura, uma espécie de necessidade catártica da consciência burguesa ilustrada nos anos de chumbo do Brasil.
A poesia torna-se marginal, caracterizando-se pela experimentação e abandonando as publicações formais ou “burguesas”. Os poemas são distribuídos em jornais mimeografados ou em panfletos copiados em “aparelhos” de fundo de quintal. Eram comuns as exposições de poemas em “varais” improvisados de literatura, bradando pela liberdade de expressão. Alguns poemas, para causar mais impacto libertário, eram atirados do alto de prédios nos centros urbanos.
Em oposição à preocupação formal do concretismo, os “marginais” buscavam a denúncia, sem se importar com a estrutura, retratando o cotidiano de forma coloquial. Uma poesia acessível ao povo, com objetivos claros de despertar-lhe a consciência. São comuns a paródia, a crítica e o deboche das instituições e da sociedade.
Por outro lado, eclodia um movimento de releitura da antropofagia proposta por Oswald de Andrade anos antes: o Tropicalismo. O movimento de jovens artistas nordestinos como Torquato Neto, Caetano Veloso e Gilberto Gil, radicalizava na expressão antropofágica de uma nova cultura para o Brasil. Sincrético, inovador, aberto à incorporação de novas tendências, a tropicália misturou rock, bossa-nova, samba, baião entre outros. Era o “pop folclore”, a antítese entre a tradição e a vanguarda, entre a cultura “padrão” e a cultura de massas. Duramente repreendido pela ditadura militar, a tropicália produziu muito em pouco tempo. Em pouco mais de um ano, o movimento deixou de existir, mas marcou profundamente a cultura nacional.
Poesia-práxis
A Poesia-práxis foi um movimento dissidente do concretismo, que buscava representar a matéria-prima capaz de ser transformada, aberta. Guarda um aspecto dinâmico, a que davam o nome de “palavra-energia” em contraposição às formas estáticas, as chamadas “palavras-coisa” do concretismo.
O estilo apresenta a valorização da palavra em seu contexto extralinguístico, ligando-se à realidade social, com ênfase no ritmo, na palavra e no verso. Sua principal característica são as experimentações de caráter morfológico, brincando com a forma das palavras em busca de novas significações, resumidas pelo lema “palavras que geram outras palavras”.
Poema-processo
De clara influência dadaísta, o poema processo se caracteriza pela utilização de signos visuais para construir significados artísticos, explorando as possibilidades poéticas dos signos não verbais. Assim, para o estilo, o uso da palavra é dispensável e seus integrantes refutam o verso como meio exclusivo da expressão ou da criação poética. O resultado são combinações inusitadas em que as imagens concentram significados e relacionam-se ocasionalmente com signos verbais a fim de produzir sentidos e contextos.
Poesia social
Surgida como contraposição ao movimento concretista, conta com diversos autores que estavam junto do movimento vanguardista, mas que, a certa altura, sentiram que era o momento da retomada do verso discursivo na construção de uma poesia de resistência, que pudesse denunciar a opressão do momento e fazer duras críticas sociais. Para isso, era necessário que fosse construída com uma linguagem simples e cotidiana, de fácil entendimento. Faz parte desse movimento o renomado poeta Ferreira Gullar.
Não há Vagas
O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão
O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
– porque o poema, senhores,
está fechado:
«não há vagas»
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O poema, senhores,
não fede
nem cheira
(Ferreira Gullar)
Tropicalismo
Movimento artístico fruto dos festivais de música dos anos 60, foi o símbolo da contracultura no Brasil. Apresentava o humor, a irreverência e o vanguardismo como características principais e guarda uma relação direta com a antropofagia oswaldiana, na medida em que incorporava referenciais estéticos eruditos, populares ou pop à sua produção artística e misturava as guitarras elétricas – marca registrada de ritmos estrangeiros – aos ritmos nacionais como samba, bossa-nova ou baião.
Com isso, “deglutia” o estrangeiro e carnavalizava a cultura, partindo na defesa da identidade cultural brasileira. Dessa maneira, não encontrava limites estéticos para sua criação, rompendo com padrões e estruturas poéticas ou musicais “acadêmicas”.
TROPICÁLIA
Sobre a cabeça os aviões
Sob os meus pés, os caminhões
Aponta contra os chapadões, meu nariz
Eu organizo o movimento
Eu oriento o carnaval
Eu inauguro o monumento
No planalto central do país
Viva a bossa, sa, sa
Viva a palhoça, ça, ça, ça, ça
O monumento é de papel crepom e prata
Os olhos verdes da mulata
A cabeleira esconde atrás da verde mata
O luar do sertão
O monumento não tem porta
A entrada é uma rua antiga,
Estreita e torta
E no joelho uma criança sorridente,
Feia e morta,
Estende a mão
Viva a mata, ta, ta
Viva a mulata, ta, ta, ta, ta
No pátio interno há uma piscina
Com água azul de Amaralina
Coqueiro, brisa e fala nordestina
E faróis
Na mão direita tem uma roseira
Autenticando eterna primavera
E no jardim os urubus passeiam
A tarde inteira entre os girassóis
Viva Maria, ia, ia
Viva a Bahia, ia, ia, ia, ia
No pulso esquerdo o bang-bang
Em suas veias corre muito pouco sangue
Mas seu coração
Balança a um samba de tamborim
Emite acordes dissonantes
Pelos cinco mil alto-falantes
Senhoras e senhores
Ele pões os olhos grandes sobre mim
Viva Iracema, ma, ma
Viva Ipanema, ma, ma, ma, ma
Domingo é o fino-da-bossa
Segunda-feira está na fossa
Terça-feira vai à roça
Porém, o monumento
É bem moderno
Não disse nada do modelo
Do meu terno
Que tudo mais vá pro inferno, meu bem
Que tudo mais vá pro inferno, meu bem
Viva a banda, da, da
Carmen Miranda, da, da, da da.
(Caetano Veloso)
Poesia marginal
Com o principal intuito da denúncia e protesto, o estilo é formado por poemas espontâneos e pouco cuidados esteticamente, repletos de coloquialidade e ironia. O importante é a negação do modelo de arte e de estética: o poeta está à margem da sociedade. Assim, o experimentalismo estético corre ao lado da preocupação ideológica e gera efeitos surpreendentes. No estilo, são comuns as ações performáticas para divulgação de sua produção artística.
RÁPIDO E RASTEIRO
Vai ter uma festa
que eu vou dançar
até o sapato pedir pra parar.
aí eu paro
tiro o sapato
e danço o resto da vida.
Não discuto
Paulo Leminski
não discuto
com o destino
o que pintar
eu assino
(Chacal)
AUTORES
Os irmãos Campos
Haroldo Eurico Browne de Campos nasceu em São Paulo, em 19 de agosto de 1929, dois anos antes de seu irmão, Augusto Luís Browne de Campos, nascido em 14 de fevereiro de 1931. Haroldo foi poeta, advogado, procurador e professor. Sua aparição como poeta dá-se em fevereiro de 1949, publicando seu primeiro livro, Auto do Possesso. Em 1952, funda o grupo Noigandres, com seu irmão e Décio Pignatari. Inicia correspondência com Ezra Pound, um dos maiores poetas e críticos literários do século XX, e escreve textos teóricos sobre poesia. É um dos principais articulistas a formar a base teórica da nova poesia, estabelecendo conexão entre o concretismo e a poética ocidental, sustentando sua fundamentação teórica na semântica geral e nas teorias da Gestalt – teoria da psicologia que considera os fenômenos psicológicos como sendo um conjunto autônomo e indivisível, de regras próprias e internas.
Viaja pela Europa divulgando os trabalhos da poesia brasileira ao mesmo tempo em que recolhe contribuições teóricas advindas de suas relações com autores e críticos estrangeiros. Esse trabalho coloca os poetas brasileiros como precursores da poesia concreta dentro do contexto literário mundial. Falece em 16 de agosto de 2003, aos 73 anos, em São Paulo, vítima de falência múltipla dos órgãos.
Já Augusto foi, além de poeta, tradutor, ensaísta, crítico de literatura e música. Seu primeiro livro de poemas foi publicado em 1951. Dá início ao movimento internacional da Poesia Concreta no Brasil, junto de seu irmão e Décio Pignatari. É o primeiro poeta concretista com uma obra consistente, de abandono da sintaxe convencional e do verso tradicional com rearranjos de palavras usando o espaço estrutural do papel, em policromia. Teve sua obra reconhecida internacionalmente recebendo inúmeros prêmios, dentro e fora do país.
se
nasce
morre nasce
morre nasce morre
renasce remorre renasce
remorre renasce
remorre
re
re
desnasce
desmorre desnasce
desmorre desnasce desmorre
nascemorrenasce
morrenasce
morre
se
(Humberto de Campos)
Décio Pignatari
Décio Pignatari nasceu em Jundiaí, São Paulo, no dia 20 de agosto de 1927, em uma família de imigrantes italianos, mas passou sua infância em Osasco, de onde só sairia aos 25 anos. Décio foi poeta, ensaísta, tradutor, contista, romancista, dramaturgo e professor; publicou seus primeiros poemas em 1949 e já no ano seguinte estreia seu livro de poemas. É fundador do grupo Noigandres, com os amigos Haroldo e Augusto de Campos.
É formado em direito pela Universidade de São Paulo – USP–, pesquisador da área de semiótica e crítico literário. Sua obra, além dos textos concretos, apresenta experiências como poesias em que há símbolos em lugar de palavras, a chamada “poesia semiótica”. Influenciou a propaganda, introduzindo a linguagem concreta na área.
beba Coca cola
babe cola
beba coca
babe Cola Caco
caco
cola
(c l o a c a)
Ferreira Gullar
José Ribamar Ferreira nasceu na em São Luís, no Maranhão, em 10 de setembro de 1930, um dos onze filhos de Newton Ferreira e Alzira Ribeiro Goulart. Aos 18 anos adotou o sobrenome materno “Goulart” adaptando-o a uma grafia portuguesa. Apaixonado pela poesia desde adolescente, descobriu, entre outros, Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes, influências bastante presentes em sua obra.
Ainda na década de 50, ao se mudar para o Rio de Janeiro, conhece o crítico de arte Mário Pedrosa e o escritor Oswald de Andrade, além de conseguir um emprego como revisor na revista “O Cruzeiro”.
Participou, junto aos irmãos Campos e Décio Pignatari, do movimento da poesia concreta, rompendo com eles logo depois, ao publicar o Manifesto Neoconcreto. Em 1961, Gullar assumiu a direção da Fundação Cultural de Brasília no governo de Jânio Quadros. Na instituição, que dirigiu até outubro de 1961, construiu o Museu de Arte Popular. A partir de 1962, passou a fazer parte do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes, em demonstração clara de suas inclinações políticas e de sua preocupação social. Eleito presidente do CPC, filia-se ao Partido Comunista e funda o Opinião, grupo que propõe um teatro de protesto e de resistência.
Durante a ditadura, Gullar foi preso junto a Paulo Francis, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Percebendo a situação política brasileira, exilou-se em Moscou e depois morou ainda em Santiago, Lima e Buenos Aires. No exílio, colaborou com O Pasquim, semanário “marginal” de oposição à ditadura militar. Escreveu, em Buenos Aires, o famoso Poema sujo, que chegou ao Brasil gravado em uma fita, trazida por Vinicius de Moraes e publicado no ano seguinte pela editora Civilização Brasileira. O lançamento do livro no Rio de Janeiro tornou-se um ato pela volta de Gullar, que acabou retornando ao Brasil em 1977.
Gullar aponta em sua obra a problemática da vida política e social do Brasil, do homem comum. Sua poesia é cotidiana, mas aponta para problemas universais. A denúncia e a crítica social andam juntas em construções que exploram a significação das palavras em uma linguagem simples, carregada de estilo e pronta para funcionar como arma contra a dominação e exploração social.
Outros autores
Fazem parte da construção poética de vanguarda e da contemporaneidade nomes como Torquato Neto, Caetano Veloso, Thiago de Melo, Paulo Leminski, Adélia Prado e Ricardo de Carvalho – o Chacal -, entre outros do período. Dessa forma, não deixe de pesquisá-los ou de acessar os links que apontam para a vida e obra desses autores.