A Baixa Idade Média – a cólera dos cavaleiros do apocalipse
A Idade Média foi alcunhada de modo pejorativo como o “período de trevas”, isto é, uma fase de misticismo, obscurantismo e teocentrismo, na qual todas as explicações naturais e sociais surgiram a partir da filosofia escolástica, baseada em Deus e no estudo das Sagradas Escrituras.
IGREJA CATÓLICA E O CONTEXTO MEDIEVAL
O período medieval, entretanto, deve ser compreendido também como a fase em que a Igreja Católica consolidou seu poder espiritual e temporal sobre a chamada “civilização Ocidental”, latinizando inclusive as populações germânicas. Foi, outrossim, o período em que os intelectuais da própria Igreja retomariam os estudos da Antiguidade clássica, garantindo desta forma a conservação de obras de inestimável valor cultural, como, por exemplo, as de autoria de Aristóteles, Hipócrates, Platão, Sêneca e Virgílio, entre outros. Ademais, as várias renascenças medievais culminariam com o grande Renascimento Artístico e Cultural dos séculos XIV a XVI. A Idade Média não foi meramente um período de ignorância em que o homem comum aguardava passivamente a eternidade. A excessiva religiosidade medieval foi arquitetada a partir de uma estrutura de cultura católica em uma época em que não existia um poder civil organizado.
A Idade Média é reconhecida também como a Idade do Catolicismo. A queda do Império Romano no século V determinou uma fragmentação do poder público que produziu um vazio momentâneo de poder, ocupado posteriormente pelas diversas e frágeis monarquias medievais, representantes de uma categoria de cavaleiros ou guerreiros especializados. A Igreja Católica, entretanto, passou a exercer um poder universal de fato por toda a Europa Ocidental. O papado manteve a unidade da Igreja no mundo ocidental, valendo-se de meios coercitivos, como a Inquisição papal. Criada em 1231, por Gregório IX, tratara-se de um instrumento judicial para combater heresias, isto é, ideias que fossem contra os dogmas e os sacramentos católicos. A mesma instituição que organizaria o Tribunal da Inquisição e chancelaria a tortura como forma de obter confissões, também exerceria um papel regulador da sociedade medieval através de regras morais, mantendo um relativo grau de ordem em uma época em que inexistia um verdadeiro Estado Nacional com funções policiais.
A Igreja Católica garantiria, ainda, a conservação e a preservação de preciosidades artísticas e literárias através do trabalho de monges copistas e bibliotecários. Ela foi responsável também pela formação dos padres humanistas e pelo desenvolvimento do cantochão gregoriano, marco inicial da música europeia contemporânea. A Igreja foi intolerante e, ao mesmo tempo, a mais importante instituição de preservação e desenvolvimento do pensamento cultural da civilização ocidental até o advento da modernidade. Ela não foi somente o excesso da Inquisição e os abusos da censura religiosa. A mesma organização que gerou o inquisidor Bernardo Gui também formou o humanista Desiderius Erasmo, autor de Elogio da Loucura. Vale destacar que a Igreja não era uma instituição homogênea. O clássico do cinema O Nome da Rosa, produção estrelada pelo ator escocês Sean Connery, é a mais brilhante reconstrução histórica que aborda o assunto: um padre franciscano, detetive e humanista, em um mosteiro beneditino medieval e teocêntrico.
A CRISE
Devido ao papel primordial da Igreja Católica como principal centro de estudos do medievo, a ciência e a fé se confundiam. As explicações dos eventos naturais e sociais eram feitas a partir de uma base religiosa, isto é, teocêntrica, na qual Deus era o epicentro de uma filosofia conhecida como escolástica, ou seja, uma filosofia de arcabouço teórico baseado na religiosidade católica. Se Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, como advogam as Escrituras, nada mais “racional”, no sentido medieval, que este mundo fosse o centro do Universo, daí uma teoria astronômica geocentrista que hoje, segundo nossa lógica científica e racional, nos parece tão absurda.
A arte gótica era a maior expressão da religiosidade católica em termos de arquitetura. O gênero sobreviveu graças ao mecenato monástico, isto é, ao patrocínio da própria Igreja aos artistas que elaboravam esta expressão artística essencialmente urbana nas grandes catedrais, em uma época que a vida rural ainda era predominante.
O castelo era outro importante símbolo da Idade Média, pois a inexistência de Estado Nacional fomentava um clima de insegurança onde, exceto pelas regras morais da Igreja Católica, somente a força da espada dos cavaleiros garantia a ordem social. O castelo fortificado era a segurança que os camponeses pobres procuravam. Indefesos por não portarem armas, objetos de distinção social da nobreza guerreira, os camponeses viamse reduzidos à mísera condição de servos, colocando-se sob a proteção de um clérigo ou cavaleiro em uma relação de dependência mútua que ficou conhecida como feudo-vassálica.
A sociedade era dividida de modo altamente hierárquico, isto é, clérigos e nobres representavam uma elite aristocrática que vivia da exploração de direitos sobre os demais membros da sociedade. A mobilidade vertical era praticamente inexistente e o nascimento determinava o local do indivíduo e de seus descendentes na sociedade.
Embora grande parcela da população habitasse o meio rural durante a Idade Média, a renascente urbanização não pode ser desprezada. A baixa produtividade agrícola que gerava fome e jacqueries, isto é, revoltas camponesas, eram responsáveis também por um baixo nível de comércio, dificultado, do mesmo modo, pela insegurança social e por um desequilibrado sistema monetário, no qual cada feudo emitia sua própria moeda. A Hansa Teutônica e as Feiras de Champagne representavam honrosas exceções ao frágil comércio medieval. Os centros urbanos, sobretudo aqueles localizados na Península Itálica, concentravam guildas, isto é, associações profissionais com diversas finalidades, e Corporações de Ofício, organizações responsáveis por trabalhos especializados em que a única distinção relevante entre os artesãos era sua experiência como aprendiz ou mestre. Ao contrário das empresas profissionais modernas, as corporações de ofício não apresentavam distinção entre aqueles que detinham o capital e aqueles que possuem apenas sua força de trabalho.
A urbanização medieval foi herdeira direta das Cruzadas, expedições católicas conclamadas no Concílio de Clermont pelo Papa Urbano II, em 1095, com o objetivo de expulsar os muçulmanos da Terra Santa.
Apesar das Cruzadas serem originalmente uma devoção claramente católica contra o Islã, estas expedições acabaram por provocar a retomada do comércio da Europa Ocidental com o Oriente via mar Mediterrâneo, alimentando um renascimento comercial e urbano e, sobretudo, favorecendo o surgimento de uma nova classe de comerciantes especializados que chamaremos de “burguesia”.
No século XIV, a Europa assistiu a uma grave crise que levaria à superação da Idade Média e do seu respectivo conjunto de características feudais, como a economia essencialmente agrária, os rígidos laços de dependência de homem para homem e, principalmente, a fragmentação do poder público. A fome, conhecida da Europa desde tempos imemoráveis, foi agravada pela Peste Negra, a qual dizimou parte considerável da população europeia sem distinguir grupo social e atingindo praticamente todo o continente. A Peste Negra contribuiu para agravar os problemas de produção de alimentos, já que os camponeses eram dizimados aos milhares, levando aos extremos de atos de religiosidade apocalíptica e novas revoltas camponesas que ameaçavam a ordem social. Somado a este quadro terrível, as guerras também cobravam seus tributos sobre a população europeia, como, por exemplo, a Guerra dos Cem Anos (1337-1453), que envolveu as monarquias que centralizariam os Estados Nacionais da França e Inglaterra na última grande guerra medieval. Este conflito acabaria produzindo dois grandes mitos nacionais: Joana D’Arc, heroína francesa queimada como herege pelos ingleses e canonizada pela Igreja Católica, e o rei Henrique V, eternizado como herói nacional pelo renascentista William Shakespeare.
As relações de comércio com o Oriente também agravaram a situação europeia no século XIV, uma vez que o comércio de especiarias – que tinham seu destaque seja pelo tempero ou conservação de alimentos – estava esvaindo todo o metal precioso do Velho Mundo. A Europa não contava com minas que pudessem repor a grande quantidade de ouro e prata que a cada ano deixavam o continente em troca de produtos exóticos, provocando uma balança comercial deficitária que sangrava suas divisas.
O historiador inglês Perry Anderson, em Linhagens do Estado Nacional Absolutista, identificou a crise do século XIV como o momento em que uma nobreza temerosa pela ameaça de convulsão social passou a apoiar o projeto de centralização política como uma “nova carapaça da aristocracia”. De fato, seria o Estado Nacional o principal agente patrocinador do ambicioso projeto de expansão marítima e comercial europeia que iria ampliar os horizontes geográficos da Europa Ocidental e, principalmente, superar a crise europeia através de uma política mercantil de colonialismo e metalismo.