RELAÇÕES RELIGIOSAS NO BRASIL E NO MUNDO
Com frequência, falar sobre religiosidade tende a ser uma tarefa que transita por um terreno delicado, por vezes acidentado.
ENTRE CRENÇAS, PRÁTICAS E SÍMBOLOS: OS FENÔMENOS RELIGIOSOS
O sentimento de pertencimento religioso é um elemento muito importante para entender, em grande medida, o modo como os indivíduos formam suas visões de mundo e, a partir delas, tomam decisões, assumem posturas e realizam ações materiais e simbólicas que atravessam não apenas o campo do transcendental ou espiritual, mas que são condutas observadas nos aspectos econômicos, políticos, artísticos, estéticos, entre outros.
Dessa forma, falar sobre religiosidade não apenas é, mas deve ser um processo tão complexo quanto é o fenômeno religioso e seus reflexos nas sociedades ao longo da história. Entretanto parte do debate torna-se conflituoso pela tentativa de construir argumentações que busquem, essencialmente, defender uma religião como melhor, superior ou mais válida que as demais. Essa não é a tarefa da Sociologia. Nossa disciplina buscará um debate a partir de perspectivas teóricas, mostrando como o fenômeno religioso formula visões de mundo nos indivíduos e participa na elaboração das coletividades.
SOCIOLOGIA E RELIGIÃO: VISÕES CLÁSSICAS
Durkheim, o sagrado e o profano
Émile Durkheim é um dos pilares da Sociologia como disciplina, mas também do segmento conhecido como Sociologia da Religião. Em sua obra As formas elementares da vida religiosa o autor francês afirma que a religião tem como elemento básico classificar as coisas materiais e imateriais entre o que é sagrado e o que é profano.
Nessa divisão Durkheim mostra como a religião tem uma função organizadora da vida moral dos indivíduos e sociedades. O profano – seus ritos, práticas e objetos – pertencem a um plano normal, ordinário, mundano, e mais, a relação com o profano se dá dentro de uma lógica utilitária, ou seja, a presença desse profano só é viável na medida em que é útil, quando cumpre certa função ou objetivo nessa lógica de organização da vida; não sendo, é descartado.
Já o sagrado é aquilo que é extraordinário, alvo de devoção e adoração, por isso, o sagrado torna-se superior aos indivíduos. Por ser superior, ele paira acima das consciências individuais, agindo como uma instância da consciência coletiva, algo com a função de regular e impor um comportamento moral. Em outras palavras, essa construção do sagrado como elemento superior às subjetividades e, principalmente, a dualidade sagrado-profano formam um composto que organiza, estrutura e integra a sociedade, garantindo a coesão social.
Marx, religião e ideologia
Karl Marx certamente é um dos pensadores que traça uma das perspectivas mais críticas sobre a religião, mas não é possível pensá-la de forma isolada, como ente autônomo. Para Marx, nas relações de produção da vida material, há um cenário de exploração e dominação de uma classe sobre a outra.
A estrutura, isto é, a base da sociedade está alicerçada em uma condição na qual a opressão e dominação em função das condições materiais são tão intensas e severas, que em desespero os indivíduos buscam na religião e na espiritualidade formas de encontrar abrigo e alívio para o sofrimento. Nessa reflexão, Marx vai apontar que a construção de religião concorre para uma ideologia, para a transmissão de um conjunto de ideias que buscam encobrir esse contexto de opressão e dominação. A religião – como a ideologia – são estratégias que servem às classes dominantes para justificar a dominação e exploração.
Weber e a racionalidade ocidental
Max Weber é um pensador que tem como uma das marcas de sua obra o esforço de explicar as relações sociais a partir de diferentes aspectos. Por exemplo, fenômenos econômicos têm possibilidades de entendimento que passam não apenas pela economia, mas como por fatores políticos, culturais e religiosos. O desenvolvimento do capitalismo, a ascensão da burguesia e a racionalidade ocidental passam por esse raciocínio quando Weber introduz o estudo de uma ética protestante para a compreensão de fatores econômicos.
Por tempos o trabalho foi visto como uma atividade penosa e sacrificante, além disso, para a Igreja Católica, a busca pelo lucro era entendida como pecado. Weber vai estudar como a Reforma Protestante no Século XVI, mais especifi camente as concepções puritana e calvinista, transformou a visão acerca do trabalho.
A Reforma Protestante, moldada a partir do século XVI por Lutero e Calvino vai gerar para Weber uma alteração no entendimento do “lucro”. Essa mudança de entendimento acaba por acarretar uma busca por acumulação de capitais, mote necessário para evolução da classe burguesa. Desse modo, observa-se um novo cenário de fundamentação religiosa e de valores que possibilitou a acumulação de riquezas e a prosperidade econômica. Então, para Weber, essa ética protestante foi um elemento decisivo para a consolidação e crescimento da burguesia, bem como o desenvolvimento do capitalismo.
BRASIL E SUAS RELIGIOSIDADES
O Brasil, em sua formação, teve a participação e a combinação de três grandes tradições que formaram o quadro brasileiro (portuguesa, negra e indígena). Isso permitiu a formação de um perfil cultural específico e certamente bastante diferente das matrizes culturais europeias chegadas ao continente americano com a colonização, – e também e não menos – das outras culturas latino-americanas, de colonização espanhola. Porém foi muito marcada por elementos exteriores – através do processo de imposição cultural inclusive; e de imigração crescente – como no caso das etnias africanas de seres humanos escravizados.
Essa trajetória provocou um comportamento todo próprio, novo e original. São hábitos e práticas que se configuram como algo completamente diferente das matrizes culturais anteriores ao contato, caracterizando um fenômeno que chamamos de multiculturalismo.
Presente em todos os aspectos culturais, o multiculturalismo faz de nosso povo uma grande teia de “construção e desconstrução” de significados, inclusive no campo religioso. Neste campo, através de todo o processo de troca cultural, seja ele por conflito, por assimilação ou inter-relacional, toda cultura já sofreu algum tipo de influência, e é difícil encontrar elementos hoje genuínos de uma dada cultura.
No caso do Brasil, e em boa parte da América Latina, onde a diversidade cultural é muito grande, essas trocas de informação e de elementos constitutivos das culturas acabaram por criar o chamado sincretismo religioso, que nada mais é do que um conjunto de adaptações entre as religiões, e não somente a troca. Essa era uma prática que, muitas vezes, foi utilizada como forma de manter vivo determinado conjunto de práticas religiosas dentro do contexto dominador-dominado, implícito no processo de colonização, por exemplo.
Sabe-se que os escravos africanos não podiam cultuar seus deuses e orixás e, por esse motivo, curvavam-se às imagens e santos católicos, porém criando entre eles adaptações desses símbolos e ícones das suas entidades religiosas. Associavam, inclusive, suas entidades a elementos da natureza já durante o processo de chegada ao Brasil, correspondendo seus orixás e divindades aos santos católicos.
O “processo civilizador” e ao mesmo tempo desagregador das culturas afrodescendentes criou todo um novo conjunto de símbolos, na tentativa de se preservarem enquanto grupos étnico-religiosos. Daí surgem o candomblé e a umbanda com adaptações próprias e resultantes desse processo tão complexo. Mas, se por um lado, observamos historicamente estratégias de preservação
de práticas culturais, ainda são identificadas expressões de discriminação e intolerância contra, em especial, religiosidades de matrizes africanas.
Alguns estudos arriscam dizer que religiões dissidentes das genuínas reformistas (luterana, anglicana, presbiteriana e batista — sendo as últimas calvinistas) também acabam por mesclar símbolos católicos e de religiões afrodescendentes. Isso teria como objetivo entrar de forma mais direta no imaginário popular, usando rituais e discursos sincréticos, quando observados minuciosamente.
Por tais questões, o Brasil abriga variadas formas de lidar com o sobrenatural, com o mundo do religioso, traduzindo em práticas, cânticos e toda e qualquer expressão religiosa, a própria pluralidade cultural e étnica de sua formação enquanto povo. Uma sociedade que não pode se assumir em discurso uníssono, mas sim a partir de regionalismos, nuances de comportamento e hábitos que caracterizam o original Brasil.