QUINHENTISMO BRASILEIRO
Assim como cada autor tem suas preferências temáticas ou expressionais, as épocas também as têm. Um escritor de uma época passada não trata dos mesmos assuntos de um autor contemporâneo, nem mesmo utiliza a sua linguagem.
As mudanças culturais são responsáveis por variações estéticas no tempo e no espaço. Assim, cada estilo literário é caracterizado por valores artísticos, morais, religiosos, políticos e sociais predominantes em determinada época.
No entanto, por maior que seja a influência do estilo predominante em sua época, cada escritor é um indivíduo que sempre deixa impressa sua marca no texto que produz. Por isso, um texto é o cruzamento entre um estilo de época e estilo individual.
Esses estilos individuais e estilos de época não ficam restritos à literatura. Eles também se manifestam em outras formas de arte. Veja, a seguir, como foi representado o primeiro contato entre índios e europeus:
Vamos então conhecer melhor o período artístico-cultural brasileiro do século XVI, conhecido como Quinhentismo.
CONTEXTO HISTÓRICO
Desde o século XIV, a Igreja perde espaço no monopólio da cultura. A burguesia começa a frequentar a universidade e toma contato com uma cultura desligada dos conceitos da Idade Média. A decadência do feudalismo e o fortalecimento da burguesia resultam em uma visão mais liberal, antropocêntrica, identificada com o mercantilismo. Recuperam-se os ideais da Antiguidade greco-romana, com a valorização da arte, da filosofia e da mitologia.
Em Portugal, as grandes navegações impelem o espírito português à sua vocação desbravadora e navegante. A chegada da imprensa possibilita a divulgação das obras de autores humanistas europeus. A Revolução de Avis alia a monarquia aos ideais mercantilistas proporcionando a expansão marítima portuguesa.
A cultura e as artes florescem, desmantelando os quadros da antiga cultura medieval. O êxodo rural provoca um surto de urbanização, que gera as condições para o desenvolvimento de uma nova cultura, sendo essas cidades polos de irradiação do Renascimento. A Igreja sofre os reflexos dessa crise: as forças burguesas rompem com o medievalismo católico no movimento da Reforma Protestante, ao passo que as forças tradicionais reafirmam seus dogmas católicos através das resoluções do Concílio de Trento, nos tribunais da Inquisição, lançando as bases para o movimento da Contrarreforma.
De um lado, a conquista material – representada em Portugal pelas conquistas marítimas; de outro, as mudanças espirituais – representadas aqui pela Contrarreforma. São essas as premissas para as primeiras manifestações da Nova Terra: as cartas informativas – dando conta das riquezas materiais; e a literatura jesuítica, voltada ao trabalho de catequese.
No Brasil, a ocupação efetiva do território pelos portugueses só começou por volta de 1530. A atividade literária não passava de alguns textos de informação sobre a nova terra – riquezas, paisagens e indígenas. Para garantir o domínio das novas terras, a metrópole portuguesa organizou capitanias hereditárias e enviou jesuítas para catequizar os índios.
O conjunto de manifestações dos anos de 1500, retratando a condição colonial do Brasil, sua terra e população, bem como as atividades realizadas na nova terra, é chamado de Quinhentismo. Essa literatura, apesar de produzida em solo brasileiro, reflete o pensamento, a visão de mundo, as ambições e as intenções do conquistador português.
LITERATURA INFORMATIVA
A literatura desta primeira fase faz um levantamento da nova terra, sua flora, sua fauna, sua gente. A finalidade desses textos é descrever as viagens e os primeiros contatos com a terra e os nativos, por isso essa literatura também é chamada de literatura dos viajantes, literatura de expansão ou literatura dos cronistas.
O objetivo principal é descrever e informar tudo o que pudesse interessar aos governantes portugueses. Não havia nessas comunicações quaisquer sentimentos de apego em relação à terra conquistada, percebida como mera extensão da metrópole. O que havia era a exaltação da terra, resultante do assombro europeu diante da exuberância natural desta terra tropical.
Por serem descritivas, tais cartas são carregadas de adjetivos, com uso exagerado de superlativos como forma de louvar a terra conquistada pelos portugueses. Essa exaltação da terra exótica, dos nativos – vistos com certa simpatia e malícia, é chamada de ufanismo e dá origem ao movimento nativista, que valoriza tudo aquilo que é pertencente à terra nova.
O primeiro e mais importante desses registros foi a Carta de Pero Vaz de Caminha, escrivão da frota de Pedro Álvares Cabral, endereçada a el-rei Rei D. Manuel. É considerada como a “certidão de nascimento” do Brasil; nela, Caminha mostra claramente as preocupações que atormentavam o povo português da época: a conquista de bens materiais e o aumento do número de fiéis adeptos ao Catolicismo. Veja um trecho da carta:
“Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul vimos até outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista¹, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte cinco léguas por costa. Tem, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas, delas² brancas; e a terra por cima toda chã³ e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta, é tudo praia-palma⁴, muito chã e muito formosa.
Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa.
Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados, como os de Entre-Douro e Minho⁵, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá.
Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem.
Porém o melhor fruto, que dela se pode tirar me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar.
E que não houvesse mais que ter aqui esta pousada para esta navegação de Calecute⁶, isso bastaria. Quanto mais disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento⁷, da nossa santa fé.”
1 houvemos vista: pudemos ver
2 delas… delas: umas… outras
3 chã: plana
4 praia-palma: segundo J. Cortesão, pode significar “toda praia, como a palma, muito chã e muito formosa”
5 Minho: nome de uma região de Portugal
6 Calecute: cidade da Índia para onde se dirigiam os portugueses
7 acrescentamento: difusão, expansão
Além de Pero Vaz de Caminha, certamente a figura mais conhecida entre os cronistas da nova terra, também outros viajantes relataram suas impressões sobre a nova terra e os nativos. Entre eles podem-se destacar:
• Pero Lopes e Sousa: Diário de Navegação (1530);
• Pero Magalhães de Gândavo: Tratato da Terra do Brasil e a História da Província de Santa Cruz a que Vulgarmente Chamamos de Brasil (1576);
• Gabriel Soares de Souza: Tratado Descritivo do Brasil (1587);
• Ambrósio Fernandes Brandão: Os Diálogos das Grandezas do Brasil (1618).
LITERATURA JESUÍTICA
A outra manifestação literária que se dá em terras brasileiras ocorre graças aos jesuítas, religiosos que chegaram ao Brasil junto dos primeiros colonizadores com a missão de catequizar os índios. Esses jesuítas deixaram várias cartas, tratados descritivos, crônicas históricas e poemas.
Destacam-se na produção literária de catequese os padres Manuel da Nóbrega, Fernão Cardim e, principalmente José de Anchieta. Os jesuítas produziram poesias de devoção, peças teatrais de caráter pedagógico, inspirado em passagens bíblicas e documentos que informavam o andamento de seus trabalhos a seus superiores na metrópole. Coube a Anchieta também a produção de uma gramática da língua tupi.
As composições dos jesuítas representavam o pensamento da Contrarreforma, contrários às ciências e tudo aquilo que representasse a liberdade de expressão ou de ideias. A intenção é puramente “salvacionista” e a forma ignora por completo as influências da arte renascentista.
O trabalho de catequese jesuítica, ao mesmo tempo em que impediu a destruição completa dos índios – através da luta incansável contra a escravidão indígena (o que rendeu o ódio dos colonos) –, destruiu os valores culturais indígenas, impondo um modo de vida e uma religiosidade completamente distintos do que estavam acostumados, transformando-os em presas fáceis de bandeirantes e capitães do mato. Vejamos um poema de José de Anchieta:
À Santa Inês
Na vinda de sua Imagem
Cordeirinha linda,
Como folga o povo,
Porque vossa vinda
Lhe dá lume novo.
Cordeirinha santa,
De Jesus querida,
vossa santa vida
O Diabo espanta.
Por isso vos canta
Com prazer o povo,
Porque vossa vinda
Lhe dá lume novo.
Nossa culpa escura
Fugirá depressa,
Pois vossa cabeça
Vem com luz tão pura.
Vossa formosura
Honra é do povo,
Porque vossa vinda
Lhe dá lume novo.
Virginal cabeça,
Pela fé cortada,
Com vossa chegada
Já ninguém pereça;
HERANÇA DO QUINHENTISMO
Muitos autores revisitaram os autores quinhentistas em busca das origens nacionais, ora com uma visão mais complacente daqueles acontecimentos, ora com um viés mais crítico. O que se pode afirmar, com certeza, é que o período quinhentista brasileiro, ainda que não apresen te grande quantidade de obras artísticas, nem mesmo grandes preocupações estéticas, é uma grande influência para artistas posteriores.
Observe a visão crítica de Oswald de Andrade, poeta modernista, na denúncia da exploração que marcou a colonização brasileira.
História Pátria
Lá vai uma barquinha carregada de
Aventureiros
Lá vai uma barquinha carregada de
Bacharéis
Lá vai uma barquinha carregada de
Cruzes de Cristo
Lá vai uma barquinha carregada de
Donatários
Lá vai uma barquinha carregada de
Espanhóis
Paga prenda
Prenda os espanhóis!
Lá vai barquinha carregada de
Flibusteiros
Lá vai barquinha carregada de
Governadores
Lá vai barquinha carregada de
Holandeses
Lá vem uma barquinha cheinha de índios
Outra de degradados
Outra de pau de tinta
Até que o mar inteiro
Se coalhou de transatlânticos
E as barquinhas ficaram
Jogando prenda coa raça misturada
No litoral azul de meu Brasil
(Oswald de Andrade)